5 de ago. de 2011

O SÓBRIO EQUILÍBRIO DE JOÃO BOSCO

texto escrito em 1º ago. 2009
A canção é forma de arte, linguagem, que combina a mais abstrata das formas, a música, com a mais concreta, a poesia. Do mistério da canção e da palavra cantada muitos se ocupa(ra)m, e ele permanece.
Certo é que, para a fruição completa dessa manifestação artística, parece ser preciso um equilíbrio entre os elementos que a compõem, notadamente os dois mais marcantes: a letra e a melodia. Tudo em uma canção contribui para a satisfação (ou decepção) do ouvinte: o canto, a interpretação, a performance dos músicos, o arranjo, a qualidade técnica da gravação ou do som ao vivo, a imagem dos artistas, seu carisma pessoal, simpatia e capacidade comunicativa também quando não cantam, em entrevistas e em pessoa. Porém, na letra e na melodia, esse equilíbrio mostra-se mais indispensável, mais determinante do que faz uma canção ser ou não ser. O equilíbrio tensionado do que se diz e do como se diz, cantando.
Nas canções de João Bosco tal equilíbrio se tensiona para quase contradizer-se e reafirmar-se em plenitude. Tomando como base as canções de seu mais recente e belíssimo disco, Não Vou Pro Céu, Mas Já Não Ando No Chão, pode-se comprovar que suas melodias parecem a um tempo depender e prescindir da letra.
O canto de João, neste trabalho mais livre das vocalizações em improviso, permite uma melhor compreensão das letras precisas de Francisco Bosco, Aldir Blanc, Carlos Rennó e Nei Lopes. Por sua vez, a clareza na enunciação dos versos realça as melodias, e o instrumental econômico amplia o impacto, causando uma multiplicidade de sentidos e referências à própria obra de João e ao percurso histórico secular, sesquisecular da canção brasileira. Quando então o improviso vocal entra em cena é para roubá-la, com um sabor de novidade e surpresa incríveis, como se João estivesse usando o recurso pela primeira vez em sua carreira (vide o final da faixa Tanto Faz e a introdução de Alma Barroca – provavelmente não por acaso duas canções com letra de Francisco Bosco, seu filho e co-produtor que, como João reconheceu em entrevistas, teve um papel fundamental na depuração de seu modo de cantar para esse disco).
As canções de Não Vou Pro Céu dialogam entre si de forma tão presente que o trabalho representa um forte argumento contra a ideia de que, em tempos de música líquida, o conceito de álbum, disco, estaria ultrapassado. Por exemplo, não há a menor possibilidade de se aproveitar completamente uma canção como Pintura (letra de Rennó), sem ter ouvido antes, na abertura do disco, Perfeição (Francisco Bosco). Duas odes à beleza da mulher, comparada a tetos de igreja, pores-do-sol, paisagens, cores, sonhos. Em Perfeição, Francisco/João falam em “som de Donato”, e a canção Pintura (João/Rennó) é uma “donatiana” perfeita.
As levadas de bolero, bossa, samba sucedem-se em suave e intensa sequência. A modernidade dos arranjos e do canto convive com a tradição dos temas e de alguns versos (como em Navalha) em que quase se pode ouvir Orlando Silva cantando os velhos e eternos desrumos do coração.
À exceção de Ingenuidade, composição de Serafim Adriano, todas as faixas são parcerias de João com os citados letristas, indicados entre parênteses ao longo do texto. O disco abre com o doce e dançante bolero PERFEIÇÃO (Francisco Bosco), que já nas primeiras letras do título evoca a era de ouro dos boleros (Perf ídia). As comparações do amor da amada com formas diversas de arte, o mar e velhos retratos flutuam entre um caetanado refrão (“minha menina menino, meu sol, meu irmão”) e citações de Calderón de La Barca via Chico Buarque (“sonhos são assim / sonhos são sonhos”).
NAVALHA (Aldir) é um dos grandes (maiores) momentos do disco, com a retomada da parceria interrompida tanto tempo mostrando totalmente a que veio, assim como na faixa de encerramento, Sonho de Caramujo. Claro que enquanto isso eles fizeram, com outros parceiros, coisas como Catavento e Girassol, Quando o Amor Acontece, Resposta ao Tempo, Papel Machê, Sete Estrelas, Memória Da Pele, mas é ótimo revê-los juntos. “Teu sorriso é uma navalha / Que abre o meu coração”. Precisa dizer mais? Bom, além disso, o violão balança entre a bossa e a baixaria típica dos choros e sambas antigos, pré-bossa. O vocabulário e temática remetem também a tais sambas, e a lembrança imediata é de Aos Pés da Santa Cruz, canção do repertório de Orlando Silva que foi gravada por João Gilberto, e o espelhamento de referências aparece e cresce, e começa-se a ter certeza de estar em uma aula, não, em um curso completo de história da canção brasileira, de como a tradição reinventa-se em modernidade e esta a reverencia, e de como as canções e os cantores dialogam com seus predecessores.
O clima jazzístico de PRONTO PRA PRÓXIMA embala o rico jogo de palavras da letra de Rennó, com rimas riquíssimas (“com nitidez / eis minha ex”), aliterações. E será a “negra, linda, leve, nova, vejam vocês” a Tanajura (Francisco) da faixa 7?
TANTO FAZ (Francisco Bosco) é outro clássico instantâneo, combinação incisiva e hipnótica da batida bossa nova com uma temática e universo vocabular de letra pré-bossa. Salta aos ouvidos a capacidade de dizer de novo o já dito um zilhão de vezes na canção - por causa da maravilha misteriosa que é a canção - com frescor e interesse. A letra deixa a gente às vezes adivinhar o próximo verso, o que é sempre um prazer a mais para o ouvinte, que de certa forma compartilha aquela sensação tão boa da composição; de repente, vem um desrazão, onde o som da rima é tão comum e a escolha da palavra tão rara. O final da faixa chega a ser assustador de tão tocante, com João entrando naquele modo João Bosco único, viajando nos vocais, com a batida renitente da bossa causando um impacto estético profundo. Confesso que foi difícil continuar a ouvir o disco na sequência, o dedo ficava indo direto pro botão do repeat.
O que teria sido uma pena, porque PINTURA (Rennó) é uma delícia de canção, com slides de guitarra, uma coisa meio João Donato, meio Hawaii, meio Caribe, com sua letra meio aquarela brasileira que de repente vai a Barcelona e ao Japão e compara a Lua a um CD, e a ambos, com desvantagem, ao corpo da mulher amada em sua graça e cor.
DESNORTES (Francisco Bosco). O que dizer de uma canção com esse nome fabuloso? Se o título do disco não fosse um genial achado, verso de Aldir Blanc em Sonho de Caramujo, sugerido pelo próprio Francisco para o nome do trabalho, talvez Desnortes emplacasse, e teria sido uma subversão do significado da palavra nessa letra. No (hipotético) título do CD, Desnortes significaria a ausência de ansiedade por um rumo predefinido, sabendo que é caminhando que se faz o caminho. Ou a afirmação cabal da grandeza infinita a que estaria destinado o Brasil aqui do hemisfério Sul, e que não se cumpre como nação, mas relampeia de relance na canção brasileira, a quem ficamos devendo, sempre. Ou outra coisa qualquer.
Em Desnortes a abertura com a descrição a um tempo de uma paisagem que quase dói de tão linda (o Rio, ah, o Rio...) e do estado de espírito de quem canta é, simplesmente, sublime. A segunda parte da letra fala dos desnortes, desejos, descaminhos, almas errantes em corpos ardentes de sezão. E surpreende com um discurso de reminiscências que soa estranho em um letrista de trinta anos (que, quem sabe, como a voz de Sonho de Caramujo, “nem menino era garotinho”) e absolutamente belo na voz do sessentão João Bosco. Mas a força da primeira parte é tanta que quando a última palavra da letra (“nada foi em vão”) parece conduzir ao encerramento da canção, o canto é como que atraído pelo início e voltamos a ouvir esses dezoito versos que congregam em um concentrado de intensa beleza o Morro Dois Irmão de Chico Buarque, aqui “cravejado de uma estranha ilusão”, o Corcovado de Tom Jobim onde “bóia o Cristo levitando contra o céu” e o mar de Caymmi (“é doce, irmão, morrer no mar”). Esse verso é tão pungente que “morrer no mar” precisa ser repetido três vezes, como se à morte e a morte de Quincas Berro D`Água somasse-se a do próprio Caymmi, para que o poeta possa enfim se “apagar no branco sal do mar”, dissolver-se no que dissolvido já é na água, apagar-se junto com o dia e a canção. Novamente foi difícil continuar a ouvir o disco, e a escrever esse texto.
TANAJURA (Francisco) retoma o jogo de sonoridades verbais de Pronto pra Próxima, mas exacerbado pela levada africana e pontuada por um violão em transe persistente aliado à percussão de Robertinho Silva e Marçal e ataques do violão de Ricardo Silveira, forçando a canção a dissolver-se em fade, para que a faixa pudesse terminar (ao menos para os ouvintes, a impressão é de que os músicos tocaram mais uns dez minutos improvisando em cima do mínimo, e tiveram que bater no vidro do estúdio pra tirarem eles da incorporação!). A letra tem soluções fonéticas incríveis como “brincava de cá, bulia de lá, casava, enlaçava.” Lá casava, enlaçava, de mestre.
MENTIRAS DE VERDADE (Aldir), outro título de bolero ou de radionovela. Uma canção ao estilo clássico da dupla, com assovio, linhas redondas de baixo conduzindo os casais no fim de noite à meia luz, band-aids nos calcanhares, cigarros, cantores molhados de chuva até os ossos, o disparate do amor na mala do mascate, na aguarrás goela abaixo do dominó, na gargalhada final. E tudo acaba de repente, no meio de um duelo de acordes de violão e improvisos de voz. Como se cortassem a luz do cabaré por falta de pagamento, e subissem os créditos.
JIMBO NO JAZZ (Nei Lopes) é uma curiosa combinação do habitual vocabulário de etimologia afro de Nei Lopes com uma levada rythm´n´blues, jaz, jongo, rock, sei lá! concretizada na letra que diz que o “jongo é um jazz” e “o samba, a milonga, o tango, o candombe, tudo é lá do Congo”. Show de João, fazendo sozinho de seu violão uma big band, uma Orquestra Tabajara.
PLURAL SINGULAR (Aldir). Pra quem já botou hemoptise num samba-exaltação, rimar galáxias com hemácias não chega a ser surpreendente. Canção pra ser ouvida com carinho, se deliciando com a densidade das palavras que falam de um amor, uma amada tão, mas tanto, tanto, que é “capaz de, partindo para o mar, voltar”. Fim de papo.
INGENUIDADE é a única faixa não composta por João Bosco. Regravação do samba se Serafim Adriano, gravado por Clementina de Jesus no mesmo disco que Incompatibilidade de Gênios (Incompatibilidade Clementina) e (ambas) recentemente por Caetano. Sobre Serafim Adriano, falecido há dois anos, ver Cravo Albin e o comentário de Caetano em Obra em Progresso.
Abrindo um mega parêntese, Caetano gravou também Incompatibilidade como transamba (o link do Incompatibilidade no youtube lá no Obra em progresso está errado, apontando para essa canção Rock and Roll No, que loucura!). Já que é um parágrafo de links, vale ver o comentário de Caetano sobre o genial samba de Bosco e Blanc. Esse vai ter que entrar no show do Não vou pro céu, mas em uma versão de acordo, não a maravilhosa, mas outra onda, que vemos em Incompatibilidade João.
Como exemplo de perfeito casamento entre letra e melodia, e de como as vocalizações de João Bosco, economizadas, são irresístiveis, ALMA BARROCA (Francisco) sobe, desce e voluteia em melodia cuja letra fala de alguém com o “pé no chão, coração no ar, alma barroca”. Uma letra muito inspirada, expondo as contradições de se tentar explicar o inexplicável, quando “a culpa é de ninguém, a dor é de nós dois, e nosso grande amor também”.
A maneira depurada e apurada de João Bosco tocar, cantar e conceber a interpretação e a revelação de cada canção nesse disco nos deixa imaginando que fantástico show deve vir por aí. Embora seja um bálsamo na vida de nossos ouvidos tão fatigados o aparecimento de novas canções de um artista consagrado e com a sua trajetória, quando tantos outros parecem não ter mais a mesma força criativa, alguém com a carreira de João Bosco e sua empatia com o público certamente não vai deixar de fora de um show (no caso a palavra concerto aplica-se melhor) pelo menos um punhado (todos seria impossível) de seus sucessos e canções marcantes (alguns lados B também, por favor!). Já pensaram em algumas dessas canções revisitadas com o clima límpido, denso, leve, profundo, iluminador do disco? Quando o Amor Acontece, Eu Não Sei Seu Nome Inteiro, Vida Noturna, Falso Brilhante, Incompatibilidade, Dois pra Lá. A lista é imensa, eu apenas escrevo aqui, pela ordem, meus pedidos...
SONHO DE CARAMUJO (Aldir) é o gran finale perfeito de um disco que começou com  uma faixa chamada Perfeição. A canção teve origem em um sonho de Aldir, em que o João Bosco era um caramujo que morava em seu violão. Daí ele fez a letra e retomaram  a parceria. Chuva de versos antológicos, é melhor transcrever logo a letra toda, curta e definitiva: “Nem menino eu era garotinho / Vivia adulto sozinho / Eu nunca fui aonde eu ia / Andava em má companhia / Entrava no livro que lia e fugia / Neguinho me vendo em Quixeramobim / E eu andando de elefante em Bombaim / Cumpri o astral de caramujo musical / Hoje eu gripo ou canto / Não vou pro céu mas já não vivo no chão / Eu moro dentro da casca do meu violão”. O canto é no limite tipo samba-enredo, levada forte no violão. Após a audição (umas quarenta vezes) do disco, a gente também pode não ter ido pro céu, mas com certeza já não anda no chão. A faixa (e o disco) se encerra com duas batidas secas na casca do violão. É o som do artista João Bosco, de dentro de sua casa-casca musical avisando que voltou.
Obrigado, João!!